Possuo,
[...] , um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos,
quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que 'matei', ou
seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram
a minha estima e perderam.
Quando
um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me
aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe
nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério – nele não existe
jazigo de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na
promiscuidade da salafrarice, do mau caráter. Para mim o fulano morreu, foi
enterrado, faça o que faça, já não pode me magoar.
Raros
enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém
que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso,
hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e
feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem
uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei
da vida.
Encontro
na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às
saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo
adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto
e enterrado.
|Jorge Amado|
Navegação de Cabotagem, livro de memórias,1992
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