Cabeça
vazia é a oficina do diabo, dizia a minha vó e a vó de todos os meus amigos de
infância. Ter tempo demais, sem exatamente ter o que fazer, é a mola propulsora
para as crianças pintarem as paredes com pasta de dente, plantarem ovos no
quintal ou roubarem os cigarros do pai.
Quando
adultos, a lei e a ordem nos impedem de tapear o tempo com os velhos recursos
infantis, e por isso preferimos tapeá-lo jurando não termos tempo para nada –
ao menos para começar as tarefas adiadas desde a adolescência, como começar a
ler Em Busca do Tempo Perdido.
Mas
a verdade é que temos tempo de sobra. Temos tempo demais. Por isso estamos
sempre conectados e em busca de listas salvadoras sobre as dez coisas que não
podemos morrer sem fazer, conhecer, ouvir, lembrar ou esquecer.
Tempos
atrás, perdíamos o sono e nos deparávamos à noite com nosso maior inimigo: o
silêncio. Nada contra o silêncio, mas é ele, e nada mais, o maior delator de
nosso fantasma mais primitivo: a consciência de que temos tempo de sombra,
temos tempo demais, e não sabemos o que fazer com ele quando é noite, estão
todos dormindo e as ruas, imersas em silêncio. Diante da noite, não há
meio-termo entre matar ou morrer. Antigamente assaltávamos a geladeira. Ou
ligávamos a TV para assistir ao Corujão. Ou escrevíamos cartas a amantes ou
desafetos num impulso de empolgação que se desmancharia nas primeiras luzes do
dia e da razão.
Hoje
vamos à internet. Ali, encontramos uma legião de insones armados com facões e
outros objetos pontiagudos para matar, estraçalhar, estripar o tempo de sobra.
O tempo, delatado pelo silêncio, é nosso maior delator: não temos nada de bom
para pensar. Por isso a paz não nos interessa. Ela nos leva ao silêncio, que
nos leva a nós mesmos, e esse encontro é não só indesejado: é insuportável.
No
livro Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve uma cena em que Fabiano, o
sertanejo do romance, perde uma aposta para o Soldado Amarelo. Quando percebe,
está só, sentado na sarjeta, falido, bêbado e sem argumento para explicar em
casa que o dinheiro para os mantimentos fora gasto em finalidades menos nobres.
É a chegada ao inferno sem escaladas: em silêncio, Fabiano busca um resquício
de bom pensamento para se acalmar. Em vão, conclui: a vida seria mais
suportável se houvesse ao menos uma boa lembrança. Ele não tinha. Sua vida era
seca. Infrutífera. Vulnerável. Como ele.
Em
tempos de secura do ar, de reservatórios, de ideias ou desculpas convincentes
sobre nossas faltas, eu deveria voltar a Graciliano Ramos, mas confesso que
ando ocupado demais matando o tempo que juro não ter. Todos os meus objetos
pontiagudos estão empenhados a matar o tempo na internet, mais especificamente
no Facebook, espécie de redutor do muro que antes separava o que sentíamos e o
que pronunciávamos.
Com
ele, não faz o menor sentido ter uma ideia e não dividi-la. Não compartilhá-la.
Não lançá-la para ser curtida. As ideias trancafiadas nos pesam: elas nos levam
ao silêncio e às desconfianças, entre elas a de que não são originais, não
valem ser ditas, não valem a atenção, não valem uma nota, não valem um post.
Tarde demais: quando pensamos em dizer, já dissemos. Em conjunto, essa produção
industrial de bobagens e reduções explícitas da realidade replicadas na rede
nos dão a sensação de preenchimento. De tempo encurtado. De tempo útil. De vida
bem vivida.
[...] Se
quer saber a dimensão do tempo, fique um minuto em silêncio, diziam os sábios,
que talvez não suportassem passar 15 minutos sem conferir as últimas mensagens
no celular a apitar nos bolsos das melhores famílias. Os meus vibram e apitam
mesmo quando estão vazios. Sintomas da abstinência, manifestada toda vez que
coloco o celular para carregar e me lembro de que nossas vidas pedem barulho e
transbordamento o tempo todo. Elas estão secas demais para suportar 15 minutos
de silêncio.
Matheus
Pichonelli
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