"Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos" (João Ubaldo)
[...] Que mais me deu a Bahia, que mais nos deu,
com que outras graças nos rodeou e nos criou? Bem mais fácil seria enumerar o
que ela não nos deu.
Quanto a mim, é impossível empreender esse inventário, sou
devedor, não sou credor de nada. Não há como fazer a lista de tudo o que
plasmou minha maneira de ver, sentir e expressar o mundo, de gente de todas as
extrações que me ensinou alguma coisa e me tornou o que sou.
Não é ufanismo
bairrista dizer que a Bahia é um privilégio para quem nasceu nela, ou por ela
foi adotado. Em nenhum outro país do mundo se deu a mistura de gente que sempre
foi comum no Brasil e continua a ser. E, no Brasil, não há lugar onde essa
mistura de corpos e mentes seja tão universalizada quanto na Bahia, onde faça
parte tão entranhada da paisagem humana. Como se aqui se realizasse um intento
do Criador, passamos por cima de todas as barreiras que foram criadas e ainda
são criadas contra a integração da Humanidade.
As culturas de origem africana
trazidas para cá, em todas as suas manifestações, não morreram aqui, mas se
transformaram e se revivificaram, e hoje, apesar de às vezes não percebermos
bem essa realidade, espantosa em qualquer outro país, são um exemplo para o
mundo. Aqui se dissolveram, numa mistura esplendorosa e fecunda, original e única,
raças, crenças, costumes, falas, hábitos, gostos e aparências — é difícil
avaliar como isso é precioso e raro, forte e delicado ao mesmo tempo.
Basta
trazer à mente a História, pregressa e presente, de nossa espécie, para
verificar como dificilmente, ou nunca, esse fenômeno acontece. Mas acontece
aqui e assim se define nossa identidade. Somos os detentores — e temos o dever
de também ser os guardiães — dessa magnífica singularidade.
Não somos brancos,
negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a
nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser
melhores que ninguém. Mas somos baianos.
João Ubaldo Ribeiro, em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia onde ocupa a cadeira n° 34.
Fonte: O Purgatório
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